Em 1970, Mutantes bombando, e de repente Arnaldo Baptista ficou um pouco de saco cheio de tudo. Da agitação das gravações, dos estúdios e da vida cheia de paparicações que levava com a família em São Paulo. Resolveu então, sem mais nem menos, que iria passear por outras bandas. Queria chegar até os Estados Unidos de moto, por exemplo. Coisa de rapaz de 22 anos. “Meu pai tinha muitos carros, chofer, automóveis chapa branca [ele foi secretário particular do governador paulista Adhemar de Barros]. Eu estava um pouco cansado daquilo e pensei que, se fosse viajar de moto por aí, conseguiria esquecer de tudo. E deu certo”, lembra.
No meio de tantas histórias que envolvem Arnaldo e seus companheiros dos Mutantes, essa e outras passagens que mostram a grande paixão de Arnaldo pelas duas rodas ficaram apenas na lembrança de quem conviveu com a turma da época. O recente documentário Lóki, do diretor Paulo Henrique Fontenelle, por exemplo, não fala da paixão do músico pelas máquinas. Também não há uma única foto de Arnaldo motociclista nos bancos de imagem onde Trip procurou exaustivamente por semanas – da editora Abril, da Gazeta Esportiva, arquivos pessoais de Arnaldo e amigos, nada. Para resgatar a história, resolvemos ir a Belo Horizonte promover o encontro de Arnaldo e dois de seus maiores companheiros motociclísticos, o engenheiro Eduardo Bastos Leme e o diretor de arte Paulo Orlando Lafer de Jesus, o Polé. Eles não se viam há mais de 20 anos.
BMWs caíram do céu
Ainda no aeroporto de São Paulo, o boa-praça Polé relembra de causos dos tempos de hippie, como os jantares que fazia para Rita e Arnaldo em sua casa ou o festival onde presenciou a primeira viagem de ácido de Sérgio Dias. E confessa a ansiedade pelo encontro: “Não vejo o Arnie desde que ele se jogou da janela do hospital no dia do aniversário da Rita [no dia 31 de dezembro de 1982]. Foi um dos momentos mais difíceis da minha vida. Não tive coragem de visitá-lo, éramos muito amigos e queria guardar boas lembranças de nossa infância e juventude”, justifica, e mostra o braço arrepiado.
Ainda no aeroporto de São Paulo, o boa-praça Polé relembra de causos dos tempos de hippie, como os jantares que fazia para Rita e Arnaldo em sua casa ou o festival onde presenciou a primeira viagem de ácido de Sérgio Dias. E confessa a ansiedade pelo encontro: “Não vejo o Arnie desde que ele se jogou da janela do hospital no dia do aniversário da Rita [no dia 31 de dezembro de 1982]. Foi um dos momentos mais difíceis da minha vida. Não tive coragem de visitá-lo, éramos muito amigos e queria guardar boas lembranças de nossa infância e juventude”, justifica, e mostra o braço arrepiado.
No saguão do hotel Othon, em BH, Arnaldo surge de braços dados com a mulher, Lucinha. Ruiva, cabelo chanel e franjinha, é ela quem cuida de Arnaldo desde que ele saiu do hospital, em 1982. Abraços calorosos. Os olhos de Polé e Eduardo marejam e se enchem de espanto: “Como você tá bem, rapaz! A Lucinha tá fazendo um bom trabalho”, manda Eduardo. “Caminho todos os dias. E você tinha cabelos compridos.”, retruca o Mutante em meio a gargalhadas, apontando para a careca do amigo. Eufórico, Arnaldo os reconhece depressa. Embora em momentos da entrevista tenha pedido ajuda para lembrar de passagens antigas, sua memória não falha ao referir-se a modelos de motos e peças.
Maricón! Maricón!
Voltemos à estrada. Quando decidiu que iria mesmo, Arnaldo pediu ajuda ao amigo Eduardo, que andava de moto há mais tempo, para escolher um modelo. Na oficina de seu Chico, mecânico do bairro, ficaram sabendo que as motos que tinham no Brasil não eram boas o suficiente para chegar aos “States”, e que o ideal para a road trip seria uma BMW. Decepcionados, quase desistiram da ideia. Mas, poucas semanas depois, por umas dessas coincidências da vida, dois irmãos entraram na oficina de seu Chico. Eduardo conta o que aconteceu: “Os caras queriam vender duas BMWs iguais. Foi tão inacreditável que achei que era um sinal e decidi ir junto. Arnaldo comprou uma, eu comprei a outra. A minha era 1952, e a dele 1951. Eram BMW R50 de 500 cilindradas. Pagamos 2.500 e 2.400 do dinheiro da época. Tive que vender minha Harley-Davidson 52. Mas sobraram US$ 1 mil, que levei comigo”.
Voltemos à estrada. Quando decidiu que iria mesmo, Arnaldo pediu ajuda ao amigo Eduardo, que andava de moto há mais tempo, para escolher um modelo. Na oficina de seu Chico, mecânico do bairro, ficaram sabendo que as motos que tinham no Brasil não eram boas o suficiente para chegar aos “States”, e que o ideal para a road trip seria uma BMW. Decepcionados, quase desistiram da ideia. Mas, poucas semanas depois, por umas dessas coincidências da vida, dois irmãos entraram na oficina de seu Chico. Eduardo conta o que aconteceu: “Os caras queriam vender duas BMWs iguais. Foi tão inacreditável que achei que era um sinal e decidi ir junto. Arnaldo comprou uma, eu comprei a outra. A minha era 1952, e a dele 1951. Eram BMW R50 de 500 cilindradas. Pagamos 2.500 e 2.400 do dinheiro da época. Tive que vender minha Harley-Davidson 52. Mas sobraram US$ 1 mil, que levei comigo”.
No dia 4 de fevereiro de 1970, com a máquina de Eduardo vazando óleo e nenhuma revisão, os amigos pegaram a estrada. “Tinha certeza de que chegaria no máximo até Curitiba, eu era diferente do Arnaldo. Não era aventureiro, e ele era do tipo que vivia com a mão cheia de graxa, de tanto mexer no jipe e na sua primeira motinho, uma Matchless 500 de apenas 1 cilindro”, confessa. “Eu tinha acabado de assistir a Easy Rider, queria ser igual aos motociclistas, com aquele vento no rosto”, manda Arnaldo. Eduardo, então estudante de engenharia, chegou até o Canadá, depois de quase três meses de viagem. Arnaldo abandonou o barco, ou melhor, o asfalto, um tanto antes, no Panamá.
Como a banda já fazia muito sucesso, Arnaldo foi bastante assediado enquanto rodava dentro do Brasil. A mudança veio quando saímos do país. “Ninguém me reconhecia, eu era livre. Deixei a barba crescer quando me mandei, porque a Rita não gostava de barba, e eu tinha medo dela. Lembro até hoje das paisagens maravilhosas dos Andes, com neve de um lado e mar do outro. Lembro de deitar no chão de terra para ver as estrelas quando parávamos para descansar na estrada, em sacos de dormir. Lembro que o sol era tão forte durante o dia que eu colocava o alumínio do papel de cigarro colado no nariz, para evitar queimaduras. Me recordo de ter achado as pessoas do Equador uma maravilha, muito internacionais”, enumera o Lóki.
A viagem seguiu com inúmeras paradas para reparar as motocicletas. Os amigos contam que Arnaldo, líder nato, sempre andava na frente e era também o responsável por desvendar os problemas mecânicos das BMWs. Quando chegaram ao Peru, uma das máquinas quebrou, e Arnaldo arrumou emprego em uma oficina para poder consertar a moto. “Ele era destemido, corria atrás de caminhões que o fechavam no deserto do Atacama e gritava: ‘Maricón! Maricón!’. Ele sempre teve um ouvido inacreditável. Percebia que havia um problema nas peças só pelo ronco da motocicleta”, lembra o companheiro. “No Peru trabalhei nessa oficina e arrumei a moto de muita gente. Tive que pedir dinheiro para minha mãe para comprar uma peça, mas no fim deu tudo certo. Problema mesmo foi a lhama do hotel que cuspia o tempo todo na minha cara. Ela recebia uma mamadeira com leite e cuspia de volta. Uma graça”, diverte-se Arnaldo.
Drogas na privada
As histórias são inúmeras. Entre uma e outra, o olhar de Arnaldo se perdia, como se estivesse aos poucos calibrando a memória. E, num rompante, gargalhava e balançava as mãos ao divertir-se com algumas lembranças com riqueza de detalhes. “O cérebro é a máquina mais perfeita que existe. Você lembra das baratas voadoras do Equador? E em Porto Bolívar, que tivemos que pegar um barco e dormir com porcos e galinhas? Lembra?” Eduardo confirma. “E você lembra por que teve que voltar ao Brasil?”, retruca. Arnaldo faz que não, com um sorriso amarelo no rosto. “Acho que tive que gravar com os Mutantes, não foi?” Mais ou menos.
As histórias são inúmeras. Entre uma e outra, o olhar de Arnaldo se perdia, como se estivesse aos poucos calibrando a memória. E, num rompante, gargalhava e balançava as mãos ao divertir-se com algumas lembranças com riqueza de detalhes. “O cérebro é a máquina mais perfeita que existe. Você lembra das baratas voadoras do Equador? E em Porto Bolívar, que tivemos que pegar um barco e dormir com porcos e galinhas? Lembra?” Eduardo confirma. “E você lembra por que teve que voltar ao Brasil?”, retruca. Arnaldo faz que não, com um sorriso amarelo no rosto. “Acho que tive que gravar com os Mutantes, não foi?” Mais ou menos.
Ao chegarem ao Panamá, os viajantes resolveram dar uma volta nas redondezas do hotel. Na praça logo em frente, tiveram dois encontros marcantes. O primeiro foi com o guru dos Beatles, Maharishi Mahesh Yogi, com quem trocaram breves palavras sobre estudos com peyote e logo se despediram. O outro, com um americano que tocava um instrumento de corda, cujo nome eles não recordam, mas que foi o suficiente para chamar a atenção de Arnaldo. “Ele logo fez amizade com o cara para aprender a tocar aquele troço. Acontece que o gringo era traficante, e papo vai, papo vem, abriu a jaqueta e ofereceu de tudo pra nós. Arnaldo voltou para o hotel cheio de material”, conta Eduardo. “O cara vendia umas cartas escritas com LSD, aí eu comprei. Queria saber o que estava escrito nelas”, conta o Mutante. O problema é que no dia seguinte o cara foi preso e dedurou os brasileiros. “A polícia nos procurou e, com medo, Arnaldo jogou tudo na privada. Fiquei apavorado, porque era careta. Nunca tomei um ácido na vida”, revela o ex-cabeludo. Aproveitando que os Mutantes lançavam o álbum A Divina Comédia e tinham shows marcados, Arnaldo deu uma grana para um americano enviar sua moto de navio para o Brasil e se mandou para São Paulo de avião.
Apesar do susto, Eduardo foi até o Canadá e nunca mais parou suas andanças motociclísticas. “Hoje é um dia muito especial pra mim. O Arnaldo mudou a minha vida. Peguei um gosto pela estrada tão forte que já fiz viagens até o Amazonas, Alasca, Chile. Isso sem falar na minha vida profissional. Tudo mudou por causa dessa viagem e das coisas que ele me ensinou”, conta, emocionado. Durantes os meses de poeira, Eduardo diz que o amigo estava obcecado por amplificadores, e ele ouvia e absorvia tudo. Na época o Brasil não possuía boa tecnologia na aparelhagem de som e, quando chegou aos Estados Unidos, Eduardo ficou embasbacado com os aparelhos que viu nos shows de rock. Voltou para o Brasil e abriu uma empresa especializada nisso. Hoje aluga equipamentos para mega-apresentações do patamar dos shows de Madonna por aqui.
O Mutante, por sua vez, apesar da debandada no Panamá, nunca largou as duas rodas. Por sua garagem passaram modelos como uma Norton 500 cilindradas ou uma Triumph Boneville 650, embora a máquina de seus sonhos seja mesmo uma MV Agusta, esportiva italiana de primeira linha. “O Giacomo Agostini [italiano 15 vezes campeão de motovelocidade] ganhava todas as corridas com ela”, manda. Quando voltou de viagem, Arnaldo logo vendeu sua BMW. “O pai da Rita tinha medo de guerra. Ele ficava louco quando ouvia o som da minha máquina, achei melhor vender.”
Rita Lee no cronômetro
O tempo longe das duas rodas não durou muito. No ano seguinte, Arnaldo e o amigo Polé resolveram que iriam disputar as 200 Milhas de Interlagos. A máquina escolhida foi uma Bultaco, que apelidaram de Catalã. “Estávamos empolgadíssimos. O Arnaldo tinha ido para a Inglaterra e trouxe um macacão amarelo de couro que foi um sucesso. Ele usou um capacete vermelho e eu vesti um emprestado do mecânico Chico Aragão”, ilustra. No dia da prova, a dupla fazia uma média de 200 km/h. Rita Lee nos boxes cronometrava o tempo, quando Arnaldo assumiu o comando da Bultaco TSS 250 cilindradas. “Com 15 min de prova comecei a frear, frear. Tive problema com os dois tempos e rodei na curva três”, lembra, entre gargalhadas. Polé correu como um louco até o local do acidente, mas o Mutante-motociclista levantou sem um ferimento. “Ele não machucou nada. Esse aí é cabeça dura. Bravo mesmo ele só ficou porque na queda perdeu o Rolex novinho. Ficou despedaçado”, lembra Polé.
O tempo longe das duas rodas não durou muito. No ano seguinte, Arnaldo e o amigo Polé resolveram que iriam disputar as 200 Milhas de Interlagos. A máquina escolhida foi uma Bultaco, que apelidaram de Catalã. “Estávamos empolgadíssimos. O Arnaldo tinha ido para a Inglaterra e trouxe um macacão amarelo de couro que foi um sucesso. Ele usou um capacete vermelho e eu vesti um emprestado do mecânico Chico Aragão”, ilustra. No dia da prova, a dupla fazia uma média de 200 km/h. Rita Lee nos boxes cronometrava o tempo, quando Arnaldo assumiu o comando da Bultaco TSS 250 cilindradas. “Com 15 min de prova comecei a frear, frear. Tive problema com os dois tempos e rodei na curva três”, lembra, entre gargalhadas. Polé correu como um louco até o local do acidente, mas o Mutante-motociclista levantou sem um ferimento. “Ele não machucou nada. Esse aí é cabeça dura. Bravo mesmo ele só ficou porque na queda perdeu o Rolex novinho. Ficou despedaçado”, lembra Polé.
Fim do encontro, tudo registrado em vídeo pela mulher de Eduardo, Polé entrega uma ferramenta usada na construção de seu avião para “Arnie”, como lembrança das aventuras que passaram juntos. “Era um sonho nosso de infância, mas tive que realizar sozinho”, completa.
Engana-se quem pensa que o músico aposentou o gosto pelas máquinas. “Meu desejo agora é construir uma moto com motor elétrico, movida a energia solar, para fazer outra viagem. Lucinha não vai porque tem medo. Não seria maravilhoso?”, planeja o Mutante. E qual seria o destino dessa viagem, Arnaldo? “A Lua! Eu iria para a Lua.” E a trilha? “Pode ser ‘Ando meio Desligado’.”
* Colaboraram Décio Galina e Mariana Haddad
(fonte: revista TRIP)
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